Quem era Pipetto? É Pipetto, dizia, mas eram apenas, mais uma vez, meus lábios a recordar. Somente flatus vocis. Quem era Pipetto eu não sabia. Ou melhor, alguma coisa em mim sabia, só que essa coisa se enfurnava, sonsa, na região ferida de meu cérebro.

ECO, Umberto. A misteriosa chama da rainha Loana. Rio de Janeiro: Editora Record, 2005, p. 178.
Tornara-me existencialmente, embora ironicamente, amargo, radicalmente cético, impermeável a qualquer ilusão.

ECO, Umberto. A misteriosa chama da rainha Loana. Rio de Janeiro: Editora Record, 2005, p. 211.
E dizer que há loucos que bebem ou usam drogas para esquecer, ah, se eu pudesse esqueceria tudo, dizem. Só eu sei a verdade: esquecer é atroz. Existem drogas para recordar?

ECO, Umberto. A misteriosa chama da rainha Loana. Rio de Janeiro: Editora Record, 2005, p. 59.
  "Podem me chamar de... Ismael?"
  "Não, o senhor não se chama Ismael. Faça um esforço."
  Uma palavra. Como bater contra um muro. Dizer Euclides ou Ismael era fácil, como dizer ambará quiqui cocó três corujas no guarda-pó. Dizer quem eu era, ao contrário, era como virar para trás e lá estava o muro.

ECO, Umberto. A misteriosa chama da rainha Loana. Rio de Janeiro: Editora Record, 2005, p. 12.
"(...) se aceitarmos a realidade na minúcia completa das suas discordâncias e singularidades, sem querer mutilar a impressão vigorosa que deixa, temos de renunciar à ordem, indispensável em toda investigação intelectual. Esta só se efetua por meio de simplificações, reduções ao elementar, à dominante, em prejuízo da riqueza infinita dos pormenores. É preciso, então, ver simples onde é complexo, tentando o demonstrar que o contraditório é harmônico. O espírito de esquema intervém, como forma, para traduzir a multiplicidade do real; seja a forma da arte aplicada às aspirações da vida, seja a da ciência, aos dados da realidade, seja a da crítica, à diversidade das obras. E se quisermos reter o máximo de vida com o máximo de ordem mental, só resta a visão acima referida, vendo na realidade um universo de fatos que se propõem e logo se contradizem, resolvendo-se na coerência transitória de uma unidade que sublima as duas etapas, em equilíbrio instável."

CANDIDO, Antonio. Formação da literatura brasileira. Editora Itatiaia, 2000, p. 30.
"Acentuo o que já indiquei: não há superioridade, propriamente, de uns poetas sobre os outros. Há magníficos poetas menores - dos mais altos dentre os modernos - e péssimos poetas maiores. Nenhum leitor de bom senso daria toda a obra de Baptista Cepellos, maior, pela Estrela da manhã do sr. Manuel Bandeira, menor. O que não há dúvida é que a supremacia do poema curto, centralizado em torno de uma simples emoção ou consistindo num jogo poético de habilidade, significa uma diminuição de tônus da poesia, um divórcio do poeta com o mundo, a sociedade, para confiná-lo a uma certa passividade ou a um certo enrolamento sobre ele próprio. A poesia, numa palavra, renuncia ao seu papel de ligação e de esclarecimento para se limitar ao excepcional, ao puro, para se bastar a si mesma."

CANDIDO, Antonio. (2002). Textos de intervenção. Editora 34.
   "O infortúnio é múltiplo. A infelicidade, sobre a terra, multiforme. Dominando, como o arco-íris, o amplo horizonte, seus matizes são tão variados como os desse arco e, também, nítidos, embora intimamente unidos entre si. Dominando o vasto horizonte como o arco-íris! Como é que pude obter da beleza um tipo de fealdade? Como pude conseguir, do pacto de paz, um símile de tristeza? Mas, como na ética, o mal é uma consequência do bem e, assim,  na realidade, da alegria nasce a tristeza. Ou a lembrança da felicidade passada é a angústia de hoje, ou as agonias que são têm a sua origem nos êxtases que poderiam ter sido."


POE, Edgar Allan. (1978). "Berenice". Histórias extraordinárias. São Paulo: Editora Abril Cultural, p. 55
"- Há ausências que representam um verdadeiro triunfo"

"- A 'coisidade' é aquele desagradável sentimento de que, ali onde termina a nossa presunção, começa o nosso castigo. Lamento ter de empregar uma linguagem abstrata e quase alegórica, mas quero dizer que Oliveira é patologicamente sensível à imposição de tudo aquilo que o rodeia, do mundo em que vive, do que lhe foi destinado, para dizer de maneira mais gentil. Em resumo, é despedaçado pela circunstância. Ainda mais resumidamente, o mundo o incomoda."

"Imaginar um repertório de insignificâncias, o enorme trabalho de investigá-las e conhecê-las a fundo."

"somente as ilusões eram capazes de mover os seus fiéis, as ilusões e não as verdades."

"todo o pensamento destruía tudo no mesmo momento em que procurava aproximar-se."

"A desordem em que vivíamos, ou seja, aquela ordem em que um bidê se havia convertido"

"Estou falando de inocência edênica, não de estupidez."

"já que você sempre foi um espelho terrível"


CORTÁZAR, Julio. O jogo da amarelinha. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2006.
"O melhor ainda não foi escrito."

"É como se a vida dissesse o seguinte: e simplesmente não houvesse o seguinte."

"A criação me escapa. E nem quero saber tanto. Basta-me que meu coração bata no peito. Basta-me o impessoal vivo do it."

"Dor é vida exacerbada. O processo dói. Vir-a-ser é uma lenta e lenta dor boa. É o espreguiçamento amplo até onde a pessoa pode se esticar. E o sangue agradece. Respiro, respiro. O ar é it. Ar com vento já é um ele ou ela. Se eu tivesse que me esforçar para te escrever ia ficar tão triste. Às vezes não aguento a força da inspiração. Então pinto abafado. É tão bom que as coisas não dependam de mim."

"O horrível dever é o de ir até o fim."

"Levantei-me. O tiro de misericórdia. Porque estou cansada de me defender."

"O que não vejo não existe? O que mais me emociona é que o que não vejo contudo existe."

"E respeito muito o que eu me aconteço."


LISPECTOR, Clarice. Água viva. Rio de Janeiro: Rocco, 1998.

ALTERIDADE

Quando Emerson diz "O povo, e não a universidade, é o lar do escritor", poucos parecem entendê-lo.

Por que lemos? Samuel Johnson: "A leitura deve atender à uma preocupação central, algo que nos diz respeito, e que nos é útil".

Francis Bacon: "Não leia com o intuito de contradizer ou refutar, nem para acreditar ou concordar, tampouco para ter o que conversar, mas para refletir e avaliar."

"Sem dúvida, o prazer da leitura é pessoal, não social", diz Harold Bloom, e continua:

"Não tentar melhorar o caráter do vizinho, nem da vizinhança, através do que lemos ou de como o fazemos. O auto-aperfeiçoamento é projeto suficientemente grandioso para ocupar a mente e o espírito: não existe a ética da leitura."

E se existe a estética, que ela nos seja pessoal. E que jamais seja imposta (ao próximo ou a si mesmo).

Mistificar a leitura, cultuar os livros, isso tudo é recalque, ignorância.

Se alguns acreditam que Paulo Coelho ou Dan Brown não escrevem literatura ("O que é literatura": discussão datada e hoje completamente irrelevante), não há aí motivo algum de não lê-los. Afinal, não se critica quem lê gibis, revistas, jornais.

O sucesso estrondoso de ambos Paulo CoelhoDan Brown seria uma indicação de que a humanidade estancou na mediocridade? Será mesmo que o leitor destes autores não lê nada além de tais autores?

A literatura não interessa muito. O que interessa é ler. Vamos 'livrar a mente da presunção', como pede Johnson. O que nos interessa é anamnese, é reflexão, é nos avaliarmos através da leitura, a leitura que nos apraz.

Emerson diz que "Para ler bem é preciso ser um inventor". Sejamos inventivos com Paulo Coelho ou Thomas Mann. Tenhamos a liberdade de escolha, e se escolhermos ambos, que sejamos lembrados pela pluraridade e não pela mediocridade creditada à leitura de um ou dois escritores. Tenhamos também o sossego de não ouvirmos pessoas que acreditam saber o que a humanidade deve ler - sobretudo quando elas não estão abertas a discutirem sobre o assunto.

(De que adianta alguém dizer que não lê Dan Brown mas continua sendo medíocre lendo William Faulkner?) 

"Literatura de ficção é alteridade." Harold Bloom

Liberdade é alteridade, sabedoria é alteridade.
Preconceito, presunção, pedantismo, não.

André Rebelo
"Se você não quiser ser compreendido, fale sempre através de parábolas. As pessoas, em geral, adoram não compreender. Isso não quer dizer que vão ler teu livro se ele for incompreensível. Mas hão de comprá-lo. É bonito ter em casa alguma coisa que não se compreenda."


HILST, Hilda. (2001). "Por que, hein?". Cascos & carícias & outras crônicas. São Paulo: Editora Globo, p. 26.
"Dizer que uma obra de arte faz parte da cultura é uma coisa um pouco escolar e artificial. A obra de arte faz parte do real e é destino, realização, salvação e vida."


ANDRESSEN, Sophia de M. Breyner. Poemas escolhidos. São Paulo: Companhia das Letras, 2004, p. 155.
"porque a vida ri-se das previsões e põe palavras onde imaginamos silêncios, e súbitos regressos quando pensávamos que não voltaríamos a encontrar-nos"

"e eu aqui, entalada entre hoje e o futuro, e sem esperança em nenhum dos dois"

"O passado é um imenso pedregal que muitos gostariam de percorrer como se de uma auto-estrada se tratasse, enquanto outros, pacientemente, vão de pedra em pedra, e as levantam, porque precisam de saber o que há por debaixo delas"


SARAMAGO, José. A viagem do elefante. São Paulo: Companhia das Letras, 2008. 
" Na página 393, como divertimento para o leitor e alerta para qualquer crítica futura, ver Para eles eram feios, uma incrível coletânea de diatribes devidas a especialistas da época sobre obras de artistas que hoje consideramos grandíssimos.
(...)

Para eles eram feios
* Dentro de cem anos Les Fleurs du mal serão recordadas apenas como curiosidade. (Émile Zola, por ocasião da morte de Baudelaire)
* O senhor sepultou seu romance em um cúmulo de detalhes que são bem desenhados, mas totalmente supérfluos. (Carta de um editor a Flauber, sobre Madame Bovary)
* Em seus romances não há nada que revele dotes imaginativos particulares, nem a trama, nem os personagens. Balzac nunca ocupará um lugar de destaque na literatura francesa. (Eugène Poitou, Revue des Deux Mondes, 1856)
* Em O morro dos ventos uivantes, os defeitos de Jane Eyre [da irmã, Charlotte] são multiplicados por mil. Pensando bem, o único consolo que nos fica é o pensamento de que o romance nunca será popular. (James Lorimer, North British Review)
* A incoerência e a falta de forma de seus poeminhas - não saberia defini-los de outra maneira - são assustadoras. (Thomas Bailey Aldrich, The Atlantic Monthly, sobre Emily Dickson, 1982)
* Moby Dick é um livre triste, esquálido, tedioso, até mesmo ridículo... Além do mais, esse capitão louco é de uma chatice mortal. (The Southern Quartetly Review, 1851)
* Walt Whitman tem a mesma relação com a arte que um porco com a matemática. (London Critic, 1855)
* Impossível vender histórias de animais nos EUA. (relatório de leitura de George Orwell, A revolução dos bichos, 1945)


ECO, Umberto. História da feiúra. Rio de Janeiro: Record, 2007, p. 391 e 393.
"A melhor esmola, ainda assim, é a do pobre, ao menos fica tudo entre iguais."

"o descasque miudinho duma palavra"

"e que pensamento é esse que pensa o outro pensamento"

"Não se pode esperar que se pense em tudo e ao mesmo tempo."

"brincar é um ato seriíssimo, grave, filosófico, até"

"Se eu fiar a toda a gente e não me pagarem, como é que eu fico. Todos temos razão, quem é meu inimigo."

"há fomes que não podem esperar"

"Não tinha havido multiplicação dos peixes, havia multiplicação dos homens."

"com licença se arrotei"

"e até a liberdade é uma bofetada"

"uma palavra nunca vem só, mesmo a palavra solidão precisa de alguém que a sofra"

"quando os mistérios são da porta de casa para fora é melhor que lá fiquem"

"neste dia levantado e principal"


SARAMAGO, José. Levantado do chão. (1979)
"Walt Whitman anuncia uma nova terra, um novo homem, uma nova liberdade, uma nova ordem, um novo amor."


FAUSTINO, Mário. Artesanatos de poesia.
"Os mitos representam a mente que os criou, e não uma realidade externa."


LÉVI-STRAUSS, Claude. Olhar, escutar, ler.
"Quando um louco sai à rua, todos que se lhe deparam parecem loucos também."


ROTERDÃ, Erasmo. Elogio da loucura.
"O espírito humano é naturalmente levado a supor que há nas coisas mais ordem e semelhança do que possuem; e, enquanto a natureza é plena de exceções e de diferenças, por toda a parte o espírito vê harmonia, acordo e similitude."


BACON, Francis. Novum organum.
"...eu fico na beirada de um precipício maluco. Sabe o quê que eu tenho de fazer? Tenho que agarrar todo mundo que vai cair no abismo. Quer dizer, se um deles começar a correr sem olhar onde está indo, eu tenho que aparecer de algum canto e agarrar o garoto. Só isso que eu ia fazer o dia todo. Ia ser só o apanhador no campo de centeio e tudo. Sei que é maluquice, mas é a única coisa que eu queria fazer. Sei que é maluquice."


SALINGER, J. D. O apanhador no campo de centeio.
"(...) Mas a ideologia do "fardo do homem branco" levou muitas narrativas a criar personagens repulsivos referentes a qualquer etnia não-européia, do árabe desleal aos thugs indianos estranguladores, para não falar dos incontáveis chineses de rosto sinistro, mestres de todo tipo de crueldade. E isso aconteceu também nos quadrinhos: basta lembrar de Ming, de Alex Raymond, na saga Flash Gordon, cuja perfídia se mostra evidente em seus traços asiáticos, ou nos inimigos de James Bond, nos romances de Ian Fleming, que, muito mais do que nos filmes, são quase sempre mestiços ou agentes comunistas, e são verdadeiros monstros que parecem construídos no laboratório de algum mad scientist "


ECO, Umberto. História da feiúra. Rio de Janeiro: Record, 2007, p. 197.
"O melhor caminho para uma desculpabilização universal é chegar à conclusão de que, porque toda a gente tem culpas, ninguém é culpado"

"julgamos que tínhamos fechado a porta e afinal ficámos entalados nela"

"A mãe de Maria da Paz tem sido muito de igrejas desde que enviuvou. Privada da majestade marital, a cuja sombra, crendo que se acolhera, havia murchado durante anos e anos, foi à procura de um outro senhor a quem servir, um senhor daqueles de para a vida e para a morte, um senhor que, além de tudo o mais, lhe oferecia a inapreciável vantagem de que não a deixaria outra vez viúva."

"o saber é realmente uma coisa muito bonita, Depende do que se saiba, Também deverá depender de quem sabe"

"e ficaram assim, quase abraçados, quase juntos, à beira do tempo."


SARAMAGO, José. O homem duplicado. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.
"Estamos em 1971 e Mirek diz: a luta do homem contra o poder é a luta da memória contra o esquecimento."

"Pouco depois casou com uma mulher cuja beleza lhe dava finalmente segurança."

"Ao mesmo tempo, ele se impunha na pesquisa científica e esse sucesso o protegia."

"Como se sua vida se emancipasse e tivesse de repente seus própios interesses, que não correspondiam de maneira alguma aos de Mirek. É assim que, na minha opinião, a vida se transforma em destino."

"As mulheres não procuram o homem bonito. As mulheres procuram o homem que teve mulheres bonitas."

"Digamos de outra maneira: toda relação amorosa repousa sobre convenções não escritas que aqueles que se amam estabelecem precipitadamente nas primeiras semanas de amor. Eles ainda estão numa espécie de sonho, mas ao mesmo tempo, sem sabê-lo, redigem como juristas rigorosos as cláusulas detalhadas de seu contrato. Oh, amantes, sejam prudentes nesses perigosos primeiros dias! Se levarem para o outro o café-da-manhã na cama, terão de levá-lo para sempre, se não quiserem ser acusados de desamor e de traição."


KUNDERA, Milan. O livro do riso e do esquecimento. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.
"(...) Não posso suplicar que meus erros me sejam perdoados; o perdão é um ato alheio e só eu posso salvar-me. O perdão purifica o ofendido, não o ofensor, a quem quase nada afeta. A liberdade de meu arbítrio talvez seja ilusória, mas posso dar ou sonhar que dou. Posso dar a coragem, que não tenho; posso dar a esperança, que não está em mim; posso ensinar a vontade de aprender o que pouco sei ou entrevejo. (...)"


BORGES, Jorge Luis. (2009). "Oração". Poesia/Elogio da Sombra. São Paulo: Companhia das Letras, p. 71.
"Por Deus, Edward, de onde é que você tirou esses delírios absurdos? Foi achá-los em algum romance, suponho?"


Trecho de Amor e amizade, de Jane Austen, citado por GOODY, Jack. (2009). Da oralidade à escrita. In: MORETTI, F. (Org.). O Romance, 1, A cultura do romance. São Paulo: Cosacnaify, p. 57.
"Queequeg, look here—you sabbee me, I sabbee—you this man sleepe you—you sabbee?"

"Me sabbee plenty"


MELVILLE, Herman. (1851). Moby Dick or The Whale. New York: Harper & Brothers, p. 227. (Versão para iPhone, disponível no iBooks)
     "Vivemos numa época de especialização do conhecimento, causada pelo prodigioso desenvolvimento da ciência e da técnica, e da sua fragmentação em inumeráveis afluentes e compartimentos estanques, tendência que não poderá senão se acentuar nos anos por vir. A especialização traz consigo, sem dúvida, muitos benefícios, porque permite aprofundar a exploração e a experimentação, e é o motor do progresso; mas determina também, como consequência negativa, a eliminação daqueles denominadores comuns da cultura graças aos quais os homens e as mulheres podem coexistir, comunicar-se e sentir-se de algum modo solidários. A especialização leva à incomunicabilidade social, à fragmentação do conjunto de seres humanos em estabelecimentos ou guetos culturais de técnicos e especialistas a que a linguagem, alguns códigos e informação progressivamente setorizada e parcial relegam naquele particularismo contra o qual nos alerta o antiquíssimo adágio: não é necessário se concentrar tanto no ramo nem na folha, a ponto de esquecer que eles fazem parte de uma árvore, e esta de um bosque. O sentido de pertencimento, que conserva unido o corpo social e o impede de se desintegrar em uma miríade de particularismos solipsistas, depende, em boa medida, de que se tenha uma consciência precisa da existência do bosque. E o solipsismo - de povos ou indivíduos - gera paranóias e delírios, aquelas deformações da realidade que sempre dão origem ao ódio, às guerras e aos genocídios. A ciência e a técnica não podem mais cumprir aquela função cultural integradora em nosso tempo, precisamente pela infinita riqueza de conhecimentos e da rapidez de sua evolução que levou à especialização e ao uso de vocabulários herméticos
     A literatura, ao contrário, diferentemente da ciência e da técnica, é, foi e continuará sendo, enquanto existir, um desses denominadores comuns da experiência humana, graças ao qual os seres vivos se reconhecem e dialogam, independentemente de quão distintas sejam suas ocupações e seus desígnios vitais, as geografias, as circunstâncias em que se encontram e as conjuturas históricas que lhe determinam o horizonte. [...] E nada defende melhor os seres vivos contra a estupidez dos preconceitos, do racismo, da xenofobia, das obtusidades localistas do sectarismo religioso ou político, ou dos nacionalismos discriminatórios, do que a comprovação constante que sempre aparece na grande literatura: a igualdade essencial de homens e mulheres em todas as latitudes e a injustiça representada pelo estabelecimento entre eles de formas de discriminação, sujeição ou exploração. Nada, mais do que os bons romances, ensina a ver nas diferenças étnicas e culturais a riqueza do patrimônio humano e a valorizar-lás como uma manifestação de sua múltipla criatividade. [...]
     Esse conhecimento totalizador e imediato do ser humano, hoje, encontra-se apenas no romance. Nem mesmo os outros ramos das disciplinas humanistas - como a filosofia, a psicologia, a história ou as artes - puderam preservar essa visão integradora e um discurso acessível ao profano, porque, por trás da pressão irresistível da cancerosa divisão e fragmentação do conhecimento, acabaram por sucumbir também às imposições da especialização, por isolar-se em territórios cada vez mais segmentados e técnicos, cujas idéias e linguagens estão fora do alcance da mulher e do homem comuns. Não é nem pode ser o caso da literatura, embora alguns críticos e teóricos se empenhem em transformá-la em uma ciência, porque a ficção não existe para investigar uma área determinada da experiência, mas para enriquecer de maneira imaginária a vida, a de todos, a vida que não pode ser desmembrada, desarticulada, reduzida a esquemas ou fórmulas, sem que desapareça. Por isso, Marcel Proust disse: 'A verdadeira vida, a vida por fim esclarecida e descoberta, a única vida, pois plenamente vivida, é a literatura'".


LLOSA, Mario Vargas. (2009). É possível pensar o mundo sem o romance? In: MORETTI, F. (Org.). O Romance, 1: A cultura do romance. São Paulo: Cosacnaify, p. 21-22.