"Vivemos numa época de especialização do conhecimento, causada pelo prodigioso desenvolvimento da ciência e da técnica, e da sua fragmentação em inumeráveis afluentes e compartimentos estanques, tendência que não poderá senão se acentuar nos anos por vir. A especialização traz consigo, sem dúvida, muitos benefícios, porque permite aprofundar a exploração e a experimentação, e é o motor do progresso; mas determina também, como consequência negativa, a eliminação daqueles denominadores comuns da cultura graças aos quais os homens e as mulheres podem coexistir, comunicar-se e sentir-se de algum modo solidários. A especialização leva à incomunicabilidade social, à fragmentação do conjunto de seres humanos em estabelecimentos ou guetos culturais de técnicos e especialistas a que a linguagem, alguns códigos e informação progressivamente setorizada e parcial relegam naquele particularismo contra o qual nos alerta o antiquíssimo adágio: não é necessário se concentrar tanto no ramo nem na folha, a ponto de esquecer que eles fazem parte de uma árvore, e esta de um bosque. O sentido de pertencimento, que conserva unido o corpo social e o impede de se desintegrar em uma miríade de particularismos solipsistas, depende, em boa medida, de que se tenha uma consciência precisa da existência do bosque. E o solipsismo - de povos ou indivíduos - gera paranóias e delírios, aquelas deformações da realidade que sempre dão origem ao ódio, às guerras e aos genocídios. A ciência e a técnica não podem mais cumprir aquela função cultural integradora em nosso tempo, precisamente pela infinita riqueza de conhecimentos e da rapidez de sua evolução que levou à especialização e ao uso de vocabulários herméticos
     A literatura, ao contrário, diferentemente da ciência e da técnica, é, foi e continuará sendo, enquanto existir, um desses denominadores comuns da experiência humana, graças ao qual os seres vivos se reconhecem e dialogam, independentemente de quão distintas sejam suas ocupações e seus desígnios vitais, as geografias, as circunstâncias em que se encontram e as conjuturas históricas que lhe determinam o horizonte. [...] E nada defende melhor os seres vivos contra a estupidez dos preconceitos, do racismo, da xenofobia, das obtusidades localistas do sectarismo religioso ou político, ou dos nacionalismos discriminatórios, do que a comprovação constante que sempre aparece na grande literatura: a igualdade essencial de homens e mulheres em todas as latitudes e a injustiça representada pelo estabelecimento entre eles de formas de discriminação, sujeição ou exploração. Nada, mais do que os bons romances, ensina a ver nas diferenças étnicas e culturais a riqueza do patrimônio humano e a valorizar-lás como uma manifestação de sua múltipla criatividade. [...]
     Esse conhecimento totalizador e imediato do ser humano, hoje, encontra-se apenas no romance. Nem mesmo os outros ramos das disciplinas humanistas - como a filosofia, a psicologia, a história ou as artes - puderam preservar essa visão integradora e um discurso acessível ao profano, porque, por trás da pressão irresistível da cancerosa divisão e fragmentação do conhecimento, acabaram por sucumbir também às imposições da especialização, por isolar-se em territórios cada vez mais segmentados e técnicos, cujas idéias e linguagens estão fora do alcance da mulher e do homem comuns. Não é nem pode ser o caso da literatura, embora alguns críticos e teóricos se empenhem em transformá-la em uma ciência, porque a ficção não existe para investigar uma área determinada da experiência, mas para enriquecer de maneira imaginária a vida, a de todos, a vida que não pode ser desmembrada, desarticulada, reduzida a esquemas ou fórmulas, sem que desapareça. Por isso, Marcel Proust disse: 'A verdadeira vida, a vida por fim esclarecida e descoberta, a única vida, pois plenamente vivida, é a literatura'".


LLOSA, Mario Vargas. (2009). É possível pensar o mundo sem o romance? In: MORETTI, F. (Org.). O Romance, 1: A cultura do romance. São Paulo: Cosacnaify, p. 21-22.